* Publicado em https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-51843967.
Eu estou relendo o memorável “A Peste” de Albert Camus. Escolha feita por motivos óbvios e, ao que parece, não sou o único. Caso tenha interesse no clássico, se não o tiver fisicamente, pode baixar aqui as versões em PDF, Mobi e Epub. Lembrando que essa obra não está isenta de Copyright. A seguir, transcrevo artigo do website BBC Brasil.
Numa pequena cidade da costa argelina, na década de 1940, a vida dos habitantes segue sua rotina até que milhares de ratos começam a surgir do subterrâneo e morrer aos milhares. Logo as pessoas também começam a pegar a doença — e seu destino é, em muitos casos, o mesmo.
Essa narrativa, escrita em 1947 pelo franco-argelino Albert Camus, tem atraído muitos leitores em diversos países da Europa, em meio à pandemia de coronavírus.
Não só ela — livros de ficção que se passam em situações de epidemias ou pandemias, como Ensaio Sobre a Cegueira (1995), do português José Saramago, e de não-ficção que descrevem a disseminação de doenças no passado estão constantemente nas listas de mais vendidos.
No Brasil, isso ainda não está acontecendo. A editora Record, que publica a versão brasileira mais recente de A Peste, diz que ainda não viu aumento na procura. A Livraria da Vila, uma das principais de São Paulo, informou à BBC que, por enquanto, não notou aumento nas vendas ou na procura por títulos do gênero.
“Encaramos com naturalidade que os europeus estejam procurando se informar por meio de obras com a temática, uma vez que a Europa já passou por grandes epidemias ao longo dos séculos e é uma das regiões mais atingidas pelo coronavírus. No entanto, a situação no Brasil é distinta e não há como prever os próximos cenários”, disse a administração da livraria, por e-mail.
A livraria afirma que, por ser um fenômeno recente no Brasil, ainda não está preparando ações específicas, como pedidos às editoras de livros sobre o tema, mas pode recomendar alguns livros, como História da Humanidade Contada Pelo Vírus, de Stefan Cunha Ujvari; Cidade Febril– Cortiços e epidemias na corte imperial, de Sidney Chalahoub e Peste e Cólera, de Patrick Deville.
A BBC procurou outras grandes livrarias, como Cultura, Travessa e Martins Fontes, mas não teve resposta.
Se não no Brasil, esses livros estão vendendo mais? Do que tratam? O que têm a ver com a realidade do surto de coronavírus? Que lições nos oferecem sobre como lidar com o surto? Por que as pessoas buscam esses livros?
Na opinião do pesquisador de Camus Raphael Luiz de Araújo, doutor em Letras pela USP e tradutor de Os Primeiros Cadernos de Albert Camus, “diante da doença precisamos nos repensar — quem somos, o que estamos enfrentando. Por falarem da condição humana, esses livros ganham interesse”.
Além disso, pensa ele, serve como um espelho e uma maneira de não nos sentirmos sozinhos em meio à incerteza da epidemia. “E é também uma forma de buscar esclarecimento, tem um potencial didático, que é pensar como foi para pessoas que viveram e pensaram nisso”, palpita Araújo.
“É uma busca por dar forma à experiência, o que o (crítico) Antonio Candido chamava de fabulação. A Peste e outros clássicos trazem explicações de princípios sem que a gente entre na religião, oferecem caminhos para a nossa busca ética”, resume ele.
A peste

O romance A Peste foi publicado em 1947, pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial, e conta a história da chegada de uma epidemia à cidade argelina de Orã. O personagem principal é um médico, Rieux, que combate a doença até o momento em que ela se dissipa, depois de muitas mortes. O narrador descreve como a população reage, indo da apatia à ação, e como alguns se expõem a risco para enfrentar a disseminação da peste.
Há aproveitadores, como um personagem que lucra com um mercado paralelo de produtos. Num primeiro momento, as autoridades hesitam em publicizar a doença, algo que Camus veria de forma crítica, diz Araújo — sua obra sempre volta ao tema da importância de nomear as coisas.
Nos anos anteriores à publicação do livro, diz Araújo, Camus vinha pesquisando sobre como se deram algumas epidemias na Argélia e na Europa. Logo após sua publicação, o livro foi lido como uma analogia sobre a ocupação alemã em Paris durante a Segunda Guerra, em parte por causa da epígrafe do livro, uma frase do escritor Daniel Defoe: “É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe”.
Araújo aponta alguns paralelos com o momento atual: “a questão do conhecimento. Vivemos um momento em que há desinformação, fatos vêm sendo contestados. Em A Peste há um cuidado de mostrar as coisas como são de fato. O livro fala que existe (na história) um problema de abstração. A desinformação, a abstração, geram histeria, comportamentos levianos ou xenofóbicos, como temos visto”, interpreta ele.
Outra coincidência é a questão de burocratização das informações sobre as mortes, que pode gerar certa desumanização dos casos, opina ele. Na ficção, o número de mortes é anunciado diariamente numa rádio. Por outro lado, o narrador descreve algumas das mortes, o que faz o leitor senti-las de uma forma mais direta.
Para Araújo, uma lição a ser tirada do romance é a ideia do coletivo. “A Peste pode ser um convite para se pensar como parte de um grupo. Neste momento em que temos divisões muito marcadas no Brasil, é um convite a pensar sobre nós como coletivo. O que atravessarmos vamos atravessar juntos. Não é ‘cada um que se salve’. Como diz o Camus, a peste vira assunto de todos. Os problemas que nos atingem passam a ser de todos. Os sentimentos individuais dão lugar aos sentimentos coletivos no livro”, diz o acadêmico.
“A narrativa que se apoia nos feitos de um grande herói é substituída pela narrativa de um destino comum de uma cidade que alcança todas as classes, incluindo o filho do juiz Othon. Nesse sentido, apesar das diferenças sociais, A Peste nos recorda que somos todos naturalmente condenados à morte.” (Fonte: BBC Brasil)
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